Eu tenho,
algum dia, no oceano, (Mas eu não sei mais se debaixo de que céus),
Lançado, como não me oferecendo ao nada, Todo um pequeno precioso
vinho... Quem quis esta
perda, oh licor? Eu obedeço, talvez ao vidente? Talvez para a
preocupação de meu coração, Pensando em sangue, vertendo-me vinho?
Em
transparência habitual Depois da fumaça rosa Recupera-me como o mais
puro mar... Perdido o vinho, misturado entre as
ondas!... Eu cuidei de saltar meu ar amargo Das faces mais profundas...
( Paul Valery, O VINHO PERDIDO)
AÍ
ESTÁ ELE, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está
a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano
fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres
vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se
entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a
confiança com que se entregariam duas compreensões. [...] Seu corpo se consola
com sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade
do corpo que o permite manter-se quente e é essa exiguidade que a torna pobre e
livre [...] A mulher não está sabendo, mas está cumprindo uma coragem. [...] E
era isso que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um
homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se
constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas
suaves lhe batem e voltam, pois ela é um anteparo compacto. [...] Agora sabe o
que quer. Quer ficar de pé parada no mar. E agora pisa na areia. Sabe que está
brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca
poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos são de
náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o
ser humano. (Clarice Lispector, O Livro dos prazeres ou uma Aprendizagem)