domingo, 2 de outubro de 2011


Eu tenho, algum dia, no oceano,
(Mas eu não sei mais se debaixo de que céus),
Lançado, como não me oferecendo ao nada,

Todo um pequeno precioso vinho...

Quem quis esta perda, oh licor?
Eu obedeço, talvez ao vidente?
Talvez para a preocupação de meu coração,
Pensando em sangue, vertendo-me vinho?


Em transparência habitual
Depois da fumaça rosa
Recupera-me como o mais puro mar...

Perdido o vinho, misturado entre as ondas!...
Eu cuidei de saltar meu ar amargo
Das faces mais profundas... ( Paul Valery, O VINHO PERDIDO)

AÍ ESTÁ ELE, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões. [...] Seu corpo se consola com sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exiguidade que a torna pobre e livre [...] A mulher não está sabendo, mas está cumprindo uma coragem. [...] E era isso que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam, pois ela é um anteparo compacto. [...] Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.
(Clarice Lispector, O Livro dos prazeres ou uma Aprendizagem)